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A Dama da Lotação

"Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. — Você aqui? A essa hora? E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro: — Pois é, meu pai, pois é! — Como vai Solange? - — Meu pai, desconfio de minha mulher. — De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa? Conta o que houve, direitinho!"

“Coincidiu de ir jantar com o casal um amigo, o Assunção. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa os pés de Solange por cima dos de Assunção, Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, mas já não era o mesmo. Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção. O amigo anuncia, alegremente: — Ontem viajei no lotação com tua mulher. Mentiu sem motivo: — Ela me disse."

"Em casa, perguntou: — Tens visto o Assunção? E ela: — Nunca mais. — Nem ontem? — Nem ontem. E por que ontem? — Nada, Carlinhos não disse mais uma palavra; foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete: — Vem cá um instantinho, Solange. — Vou já, meu filho. Berrou: — Agora!"

"Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos: — Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava: — Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!"

"Gritou-lhe no rosto três vezes "cínica!" Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou: — Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele! A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando: — Não, ele não! Ele não foi o único! Há outros!"

"Sem excitação, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta: — Um mecânico? Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou: — Sim."

"Duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". Saltaram juntos e esta aventura foi a primeira, o ponto de partida. No fim de certo tempo, os motoristas dos lotações a identificavam à distância; Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais? Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega! Chega! A metade do RJ, sim senhor!"

"Se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Ela explicou ainda que todos os dias quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, imaculada. Solange balbuciava: " Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. O marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Deu agora para andar sem calça, sua égua! Morri para o mundo"

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